Santa Cruz

SANTA CRUZ

Da feira de Bonito ao frio de São Paulo: a história de superação do zagueiro Sandoval

Defensor do Santa Cruz na Série C, Sandoval fazia frete nas feiras para ajudar família no interior pernambucano; ele negocia renovação com o Tricolor

postado em 28/10/2018 10:00 / atualizado em 28/10/2018 12:47

Peu Ricardo/DP
O céu ainda estava escuro quando era hora de acordar. No relógio, 4h. Café preto, pão e rua. Do carro de mão, fiel companheiro dos amanheceres por vezes frios do interior, saía parte do sustento da casa. Punhos cerrados para controlar o carrinho, sebo nas canelas e o destino: a feira livre de Bonito, de praxe lotada. “Eu carregava as sacolas de feira dos clientes, de roupa para vender, de sapato, as barracas dos feirantes, tudo. No interior, você não tem muito espaço para escolher”, lembra o zagueiro Sandoval, um dos atletas mais regulares do Santa Cruz na última Série C.

Nascido e criado em Bonito, cidade do Agreste pernambucano, a 136 quilômetros do Recife, o defensor não teve na dureza da infância uma exceção à realidade, comum a vários colegas. Filho caçula de sete irmãos, precisou trabalhar desde cedo para ajudar em casa. De sexta a domingo, era “o menino que carregava as feiras”. Entre frutas, verduras e barracas, havia bola, os estudos e um sonho. Sandoval queria ajudar mais em casa. Largou tudo para ser jogador de futebol. “Nós tivemos nossas dificuldades, mas, graças a Deus, se era pouco, não faltava”, disse.

Aos 32 anos, o zagueiro pernambucano olha para passado como se tudo fosse ontem. Lembra do nome de cada pessoa que lhe estendeu a mão no processo de troca do interior de Pernambuco pelo de São Paulo. Lembra do medo, do frio, do chão que dormiu, da chuva que entrava pelas brechas do teto, já tão longe de casa. A milhas dos grandes holofotes da mídia na maior parte da carreira, não em vão Sandoval vê seu auge como atleta no Santa Cruz - clube que tem futuro incerto para 2019. De fato, bastante para quem por anos jogou apenas por um teto e refeição.

No campo do Mutirão, bairro em que cresceu em Bonito, Sandoval deu os primeiros passos, passes e chutes da vida. Foi menino de jogar bola de pés descalços. Até aparecer a chance de calçar uma chuteira e largar o carrinho de mão - e os estudos, por tabela - para se dedicar ao esporte. Com o América, do Recife, migrando para Bonito no meio da década passada, Sandoval teve a oportunidade de começar a carreira. 

“Primeiro, eu consegui para ele um teste como lateral direito. Ele não passou”, lembra seu Antônio Alves, o Bidon, primeiro técnico do zagueiro e então massagista do Mequinha. “Depois, falei com Ramón (eterno craque coral e então técnico do América) para dar uma chance a ele na zaga. Deu certo, está aí até hoje”, comemora, com orgulho. Era só o começo.

Cuscuz com salsicha

Sandoval tinha 19 anos quando perdeu dona Severina de maneira repentina. “Minha mãe teve um AVC. Foi muito rápido”, lamenta. Nessa mesma época, ele já acumulava certa experiência. Passagem pelo América, base do Porto, de Caruaru, Ypiranga. “Lá em Santa Cruz do Capibaribe não assinaram minha carteira e voltei para casa. Bidon falou com Nereu Pinheiro e fui jogar a Série A2 pelo América, que tava sediado em Goiana (Zona da Mata Norte)”, recorda.

O salário era “ajuda de custo”, como ressalta Sandoval. O começo foi duro. “A gente morava numa casa apertada, colchão no chão, todo mundo junto, todo dia todo dia cuscuz com salsicha, cuscuz com salsicha de manhã, no almoço, tudo. E o lanche era um pedaço de doce de goiaba com bolacha e água”, conta.
Peu Ricardo/DP

McDonald's

De volta a Bonito sem clube e perspectiva de trabalho, Sandoval passou meses de incerteza. “Foi quando entrou meu amigo Lilo, zagueiro que jogou comigo no América. Tocou o zero onze no meu telefone. Não sabia nem de onde era. O convite era para jogar no Eco Suzano, de São Paulo. Fui embora tentar.” O arrependimento não tardaria. 

“Nunca tinha ido para São Paulo, nunca tinha viajado de avião. Fui com o coração na mão, um medo danado. No bolso, juntando tudo não dava R$ 100. Só levei uma malinha com umas peças de roupa, uma calça rasgada”, recorda. “Cheguei 4h, o cara me botou para dormir no chão. Com dois dias, queria voltar. Bateu desespero. Queria voltar de todo jeito.”

Sandoval ficou. E fez um bom campeonato pelo Suzano. Depois, defendeu o Independência de Limeira. “Graças a Claudemir Peixoto, meu segundo treinador. Fui de graça para a Copa Energil C. Joguei poucos jogos, quatro, cinco, mas fomos campeões e comecei a gostar. Um time mais estruturado, alojamento bom, alimentação boa. Salário era dormida e comida. Só. Mas era melhor do que voltar para casa”, disse. 

O primeiro salário para valer veio em 2008, pelo Flamengo de Guarulhos: R$ 2.500. Sandoval estava rico. “Até então, Lilo que me ajudava com R$ 100 para higiene pessoal, o básico mesmo. Mas fui pegando moral, crescendo e consegui o primeiro contrato ‘maior’. Nunca comi tanto McDonald's na vida”, brincou.

Sandoval teria ainda uma boa passagem pelo Santo André. Destaque, acabou parando no São Caetano, onde se firmou como titular por quatro temporadas seguidas. Conquistou acessos, foi eleito o melhor defensor da Série A2 em 2017. “Individualmente, tive duas passagens muito boas: pelo Santo André e pelo São Caetano. Clube excelente de trabalhar, estruturado, que me abriu muitas portas”, afirmou. Nenhum momento tão bom quanto o que viveu no Arruda.
Peu Ricardo/DP

Arruda, 2008/18

A história de Sandoval no Arruda começou, “essa ninguém sabe”, salienta, em 2008. “Naquele ano, o clube estava mal, na Série D. E houve um período de testes para jogadores profissionais. Como Charles Muniz estava na comissão técnica e já me conhecia, acabei ficando e fazendo dois jogos pela Copa Pernambuco”, conta. “Até surgir uma proposta melhor no Flamengo-SP. Voltei para São Paulo, mas me considero campeão da Copinha daquele ano, já que também entrei em campo.”

De volta ao Arruda dez anos depois, a história era outra. “Acho que aqui em Pernambuco só se consegue chamar atenção de clube grande fazendo currículo fora. Ou você nasce na base e tem oportunidade ou tem que ir para fora. Saindo do interior é muito difícil. Fui eleito mais duas vezes melhor zagueiro do interior de São Paulo para só então ter oportunidade no Santa Cruz”, lamentou. “E aqui estou vivendo meu auge. Fiz uma boa Série C e estou muito feliz com meu momento”, acrescentou.

Renovação de contrato

O Santa Cruz quer renovar com Sandoval. O zagueiro, por sua vez, quer ficar no Arruda. Além do desejo de ambos os lados, porém, está a parte financeira que segue sem solução. O Tricolor ainda não cumpriu o acordo para pagar os salários atrasados com Sandoval. “Tem muita chance de ficar, mas depende muito deles. Estou esperando acontecer o pagamento para a gente sentar e colocar as propostas. Recebi várias ligações de clubes de São Paulo, mas não me interessa voltar. Me interessa ficar no Santa ou no Nordeste”, pontuou.
Peu Ricardo/DP