Diante da incerteza do momento em que o mundo atravessa, e ainda mais quanto ao futuro, é natural buscar refúgio no passado, onde por mais que haja traumas e tristezas, sempre há momentos de glória registrados na memória, nos livros, nos documentos, e claro, nos jornais.
Por isso, a partir deste final de semana, o Diario de Pernambucocomeça uma sequência de resgate da história do futebol pernambucano, a partir dos seus próprios registros e personagens. Vamos rememorar jogos que marcaram a trajetória centenária do esporte no estado, protagonizando eventos marcantes para o cenário nacional.
1966 - SANTOS 3 X 5 NÁUTICO - SEMIFINAL DA TAÇA BRASIL
O ano é 1966. O Brasil e o mundo ainda se rendiam à genialidade do maior jogador da história do futebol. Pelé reinava na seleção brasileira com as conquistas das Copas de 1958 e - ainda que discretamente - 1962. E pelo Santos, ostentava cinco títulos seguidos da Taça Brasil, hoje equivalente ao Campeonato Brasileiro, além de duas Libertadores e dois títulos mundiais. Era o jogador a ser marcado. O Santos, o time a ser batido. Porém, 1966 não seria uma não fácil para o Rei.
Após a frustração com a seleção na Copa da Inglaterra (eliminada na primeira fase), Pelé também se deparou com um esquadrão digno de encarar de igual para igual o seu Santos. De ameaçar uma classificação. Era o Náutico, de Bita. Em uma vitória que ficou marcada na história do futebol pernambucano. Um triunfo por 5 a 3, em pleno Pacaembu, com quatro gols do “Homem do Rifle”, como era chamado o craque Timbu. O primeiro jogador vazar quatro vezes grande goleiro Gylmar, bicampeão mundial com a seleção brasileira.
A campanha
Final Nordeste
28/09 Náutico 3 x 0 Vitória
05/10 Náutico 3 x 2 Vitória
Quartas de final
19/10 Palmeiras 0 x 0 Náutico
26/10 Náutico 0 x 0 Palmeiras
28/10 Náutico 3 x 0 Palmeiras
Semifinal
09/11 Náutico 0 x 2 Santos
17/11 Santos 3 x 5 Náutico
19/11 Santos 4 x 1 Náutico
Em 1966, o Náutico conquistaria o quarto título do ainda inigualado hexacampeonato estadual. Mas faltava uma chancela nacional, algo que provasse a força do futebol pernambucano junto ao Brasil. Era a semifinal da oitava edição da Taça Brasil. Naquela época, o formato de disputa permitia que os times de maior qualidade, campeões em seus estados, adentrassem na competição ao longo das fases mais decisivas. E após bater o Vitória na seletiva regional e o Palmeiras nas quartas de final, havia o Santos pela frente. Havia Pelé.
No primeiro jogo, com mais de 30 mil pessoas na Ilha do Retiro, o Náutico não conseguiu segurar o Peixe, caindo por 2 a 0. Na volta, era inevitável que o Timbu fosse subestimado. Assim pouco menos de 17 mil pessoas foram ao Pacaembu. Público considerado baixo. “O Santos era naturalmente o favorito e os torcedores não deram muita importância. Acharam que era um jogo fácil’”, conta o jornalista Lenivaldo Aragão, enviado pelo Diario à época. “Uma contusão na virilha me tirou do primeiro jogo e sabíamos da dificuldade de jogar no Pacaembu. Mas foi uma noite muito feliz”, completou Ivan Brondi, meia do time alvirrubro.
A felicidade começou a ser desenhada a partir da artimanha do técnico Duque, ao inverter as camisas 5 e 8, do zagueiro Gilson Costa e do artilheiro Bita. “Quando peguei a escalação, senti a surpresa. Bita com a 5. Chamaram até de tática suicida colocar o ponta de lança de zagueiro. Mas eu conhecia Duque, que era cheio de malandragem”, lembra Lenivaldo. “Pouca gente conhecia o rosto de Bita até aquele dia e foram em cima pra marcar camisa 8. Deixou uma folga para ele se movimentar”, reforça Ivan.
De fato, o show de Bita não demorou para começar. Ainda no primeiro minuto, enquanto ‘torcedores procuravam um lugar confortável no Pacaembu’ e os ‘comentaristas de rádio apenas encerravam suas apreciações de transmissão’, o camisa cinco aproveitou passe ‘matemático’ de Miruca para abrir o placar.
Só não seria fácil. Afinal, do outro lado estava o melhor time do país. O melhor jogador do mundo. E Pelé ainda carimbou a trave, antes de Toninho empatar aos 12 minutos. Mas o Náutico não se deixou dominar e voltou à frente do placar com mais um de Bita, após passe de Ivan no fim do primeiro tempo.
Na volta do intervalo, seguia o equilíbrio e também o duelo particular entre Bita (marcando seu terceiro aos cinco) e Toninho (descontando aos 19). Miruca também fez o dele, o quarto do Náutico aos 21, e o próprio Toninho, um minuto depois, deixou o placar em um arriscado 4 a 3 para os alvirrubros.
Jogo nervoso, que fez o próprio Pelé perder a compostura. Vendo o tempo correr enquanto esbarrava na defesa alvirrubra com Gena, Mauro, Fraga e Clóvis, o Rei passou a pressionar o árbitro Armando Marques.
“Eles eram acostumados a ganhar e quando determinadas coisas não vão bem… Acharam que era moleza e não foi”, relatou Ivan, o responsável por arrancar e dar novo passe para Bita chutar de longe, aos 42 minutos, e ver Gilmar, “sofrer um frango incrível”, como descreveu Lenivaldo. “Lembro de ver o Zito pegar a bola, entregar para o Pelé que comentou: ‘Esse goleiro vem complicando a gente tem muito tempo’”, denunciou Ivan Brondi. Era o lado corneteiro de Pelé vindo à tona.
A ordem dos gols de Santos 3 x 5 Náutico
0 x 1 - Bita, ao 1’ do 1ºT
1 x 1 - Toninho, aos 12’ do 1ºT
1 x 2 - Bita, aos 44’ do 1ºT
1 x 3 - Bita, aos 5’ do 2ºT
2 x 3 - Toninho, aos 19’ do 2ºT
2 x 4 - Miruca, aos 21’ do 2ºT
3 x 4 - Toninho, aos 22’ do 2ºT
3 x 5 - Bita, aos 42’ do 2ºT
“Bita foi um flagelo para o Santos, no Pacaembu, quando o Náutico elevou o Futebol de Pernambuco”. Essa foi a manchete que estampou o caderno ‘Diário Esportivo’ no dia seguinte. “Ainda hoje, lembrar pra mim é uma satisfação. Estava no jogo e vi. Fui testemunha e ficou marcado no futebol pernambucano e brasileiro”, aponta Lenivaldo Aragão.
“Fico muito honrado em ter pertencido àquele grupo, ter feito parte daquele trabalho, e lisonjeado de ser lembrado por esses feitos. Rivalizamos com Palmeiras, Cruzeiro, Atlético-MG, Santos, entre outros. Na Taça Brasil a gente cruzava os campeões e sempre tivemos um bom desempenho, mostrando que em Pernambuco o futebol era muito bom, tanto que esse pessoal todo, Lula, Salomão, Bita, Nado, Miruca, todos foram transferidos para outros clubes”, reforça Ivan Brondi.
Na terceira partida, a de desempate, o Santos finalmente fez valer o seu favoritismo e eliminou o Náutico com uma vitória por 4 a 1, também no Pacaembu. Na final, o Peixe perderia a final para o Cruzeiro de Tostão. O mesmo Cruzeiro que perdeu a chance de conquistar o bicampeonato no ano seguinte ao cair para o Náutico na semifinal. Na decisão, o Timbu perdeu o título para o Palmeiras no jogo de desempate, no Maracanã.
Uma prova de que, na década de 1960, o Náutico estava sim entre os melhores times do Brasil.
Ficha do jogo
Santos 3
Gilmar; Carlos Alberto, Mauro, Oberdan e Geraldino (Joel); Zito e Lima; Dorval, Toninho, Pelé e Pepe. Técnico: Luís Afonso.
Náutico 5
Aloísio Linhares; Gena, Mauro, Fraga e Clóvis; Zé Carlos e Ivan; Miruca, Bita, Gilson Costa (Aloísio Costa) e Nino. Técnico: Duque.
Local: Pacaembu, em São Paulo
Data: 17/11/1966
Arbitragem: Armando Marques que andou falhando na disciplina de jôgo (comentou Lenivaldo à época)
Público: 16.811 torcedores
Renda: Cr$ 37.563.000.
Curiosidades
- Após o jogo, Lenivaldo Aragão relatou ter presenciado torcedores pernambucanos "realizando verdadeiro carnaval", em comemoração pela vitória sobre o Santos de Pelé.
- Dirigentes de Náutico e Santos se reuniram depois da partida para discutir uma possível mudança no horário do terceiro jogo, mas acabou rejeitada pelos paulistas. A reunião também teve como pauta o interesse dos santistas no atacante Bita e no goleiro Lula. O Palmeiras também realizou proposta ao Náutico oferecendo Rinaldo e Zequinha, além de uma compensação financeira, em troca dos dois atletas.
- No dia seguinte, aconteceria na sede da Federação Paulista de Futebol uma reunião com os presidentes das Federações de futebol de Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, para estudar a possibilidade de incluir os três estados na disputa do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, que estrearia em 1967. Os pernambucanos, no entanto, só foram inseridos a partir da segunda edição, em 1968 com o próprio Náutico e o Santa Cruz nos dois anos seguintes (1969 e 1970) como representantes.