Imerso à uma realidade obscura, traficou drogas até os 16 anos. Durante o mesmo período, usou maconha. “Pó, Crack, essas coisas, nunca”, garante. Válvula de escape às dificuldades da vida, acabou virando membro “considerado” da TUF. Carrega até hoje consigo nas cicatrizes do corpo e na memória as marcas de um passado violento. Marcas de pedrada, de porrada, de tiro - foi atingido na perna por uma bala disparada por uma pessoa numa moto, uma vez. E ele admite: está vivo graças ao esporte.
Aos 24 anos, Breno hoje é zagueiro titular do Náutico. Está vencendo no futebol. Mais do que isso, venceu na vida. Sem demonstrar marcas de arrependimento pelo passado violento, o defensor alvirrubro abriu a caixa preta da vida à reportagem do Superesportes. Ressalta que não aconselha os jovens a seguir o mesmo caminho adotado por ele, apesar de tratar o período “louco” como o melhor da sua vida.
A entrevista de Breno é um relato incomum no futebol nacional de um ex-membro atuante de torcida organizada que conseguiu se tornar jogador profissional. O atleta rememora o passado com detalhes, de peito aberto para que a história sirva como exemplo a não ser seguido para os “moleques” mais jovens. Não deixam de ser palavras duras, que reverberam como um soco no estômago. Como nos dias de clássico que Breno partia às ruas.
Como foi o seu envolvimento com torcida organizada?
"Eu era da Torcida Uniformizada do Fortaleza, o Leões da TUF, desde 2009. Comecei no Parque São José, só que fizemos uma junção e ficamos todos juntos com a Vila Peri, que é na Zona Oeste de Fortaleza. Nessa época, eu era da torcida, mas já jogava na base também. Me profissionalizei em 2012 pelo Corinthians de Caicó e, mesmo assim, ainda seguia na organizada. Sempre que eu ‘vinha’ de férias para Fortaleza, eu voltava para a torcida. Como dizia na nossa língua, ia para a torcida, a pista, como nós falamos. Ia para o meio do mundão."
O fato de você ter sido de TO prejudicou sua vida profissional em algum momento?
Em 2013, eu fui para o Horizonte, do interior do Ceará, e tem até uma história engraçada. Eu estava jogando o Campeonato Cearense já como profissional. E jogamos em um domingo e eu estava pendurado (com dois cartões amarelos). Quando olhei na tabela, no outro domingo era clássico: Fortaleza e Ceará. Se não me engano, nós jogaríamos contra o Guarani de Juazeiro. Eu estava com os dois cartões e pensei… É uma coisa que vou até abrir agora, que pouca gente sabe… Eu levei o terceiro cartão justamente para ir para o clássico com meus amigos. Deixei de jogar para ir para o clássico. Era coisa de moleque. Moleque assim, não tinha a mente que tenho hoje. Hoje não faria. Hoje eu tenho minha cabeça formada. Sou meio doido ainda, como os caras falam, mas já tenho a cabeça mais formada.
Como foi o seu ingresso nas organizadas?
Eu entrei na torcida por conta própria mesmo. Vendo meus amigos mais velhos indo para o jogo e fui acompanhando eles, vendo eles brigarem e fui pegando experiência. Tinha uns caras loucos que eu me espelhava: o Rifle, o Negão, o Vicente, o Beto, o Peter... Aí esses caras foram saindo da torcida e eu fui crescendo junto com os outros. Acabamos que ficamos na linha de frente do bairro. Fui ganhando moral por nunca correr dos rivais. Sempre estava na disposição ali. A gente ouvia comentários dos moleques mais novos que quando a gente tava na pista era certeza de 'vitória' na briga e eles se sentiam confiantes 'em nós'. Eu sempre gostava de ir para os clássicos com camisa preta e boné preto porque às vezes a gente se infiltrava na torcida rival para tomar as camisas deles e bater neles. Ficávamos escondidos no estacionamento do Castelão esperando o rival chegar e atacar.
Torcida Organizada em geral é relacionada a violência. Há muitos relatos de confusão em Fortaleza, incluindo a TUF, que você era integrante. Na época que você da era desse grupo, você chegou a se envolver em alguma briga, alguma confusão?
Para ser sincero, em quase todas as confusões eu estava no meio. Eu era bem como considerado um dos ‘linhas de frente’. Até quando eu vim para cá (para o Náutico), os caras da Fanáutico (torcida organizada alvirrubra) já me conheciam pelo fato de eu ser um dos linhas de frente da TUF e… em quase todas as brigas eu estava. Para falar a verdade, se eu fosse para um clássico e não tivesse briga, era a mesma coisa que não ir. Não teve o clássico.
Você sentia prazer nisso?
Sentia bastante prazer.Tipo assim, muita gente critica a torcida. 'Ah, só tem vagabundo, só tem ladrão…' Mas só quem sabe mesmo é quem está lá. Quem é da torcida.
Qual a adrenalina de estar no meio de uma organizada? O que passava pela tua cabeça?
Não sei nem te explicar. É uma adrenalina tipo assim... Você pegar um cara rival e assim… Não matar porque tirar a vida, assim, não sou a favor disso. Mas estar ali na pista é para o que der e vier. Se vier, nós temos uma ‘palavra’: se quer guerra terá, se quiser paz nós queremos em dobro. Mas torcida não é só isso. Torcida também tem as ações sociais que sempre faz para família carente. Por exemplo, no Ceará tem bastante seca, como aqui (em Pernambuco) também tem. A gente sempre reunia todo mundo, comprava galões de água para dar às famílias carentes… É tipo uma família, sabe? Tem suas coisas de guerra, mas é igual a vida. Tem o lado bom e o ruim. É a mesma coisa.
Fazendo um balanço, você vê mais coisas positivas ou negativas em ter as Torcidas Organizadas no futebol?
Eu vejo mais o lado positivo. Imagine aí um estádio sem uma torcida organizada cantando. Vai ficar o quê? Um teatro? É difícil, mano. Hoje já está muito complicado para quem vive em torcida organizada. Para manter a torcida... Estão tirando festa, tirando tudo. Tiraram sinalizador, bandeira, faixas, tudo. Já é para reprimir a torcida. Tem o lado ruim que é o da briga. Hoje eu particularmente não sou mais a favor de violência, porque já tenho minha cabeça formada, tenho minha família, um filho de nove meses, então minha cabeça meio que se transformou. Mas se eu falar que eu não sinto saudade… eu sinto!
Se você pudesse dar um conselho a essa galera que está envolvida com torcida organizada, o que você passaria de mensagem?
O que eu posso passar é que compareça sempre ao estádio, apoiando o clube e, na hora de cobrar, tem que cobrar mesmo porque futebol vive de cobrança e não vou dizer para parar de briga porque isso aí é impossível. É igual às drogas, o tráfico. O cara falar que vai acabar com as drogas é impossível. O próprio povo 'lá de cima' que traz. O que eu posso dizer é fique em paz. Mas se vier… Tem que se defender, né? Digo assim, é legítima defesa. Não vá procurar, mas se vier, se defenda.
Quando você saía para brigar, saía armado, com faca, revólver…
Não, faca não. Nem revólver. Era pedra, pau, barra de ferro, mão… Já usei barra de ferro. Já bati, já fui batido, a vida é assim.
Você já chegou a ser espancado?
Da organizada rival, não. Muito difícil. Nunca chegaram a me espancar. Mas, da polícia, já levei um sacode violento, de passar quase dois dias quebrado. Pedrada na testa com cicatriz também já levei. Peguei oito pontos com pedrada à queima roupa.
Você chegou a ser preso alguma vez?
Só detido e depois liberado em seguida. Geralmente, não tem uma lei que dê cadeia para briga de torcida. Mas, se eles pegarem dois caras batendo em um, pode alegar tentativa de homicídio, aí é difícil.
E como ficava a sua família nessa situação? Ficava preocupada, dava conselho?
Tipo assim, só fui criado sempre eu, meu pai e minha avó, que faleceu faz um mês e meio. Na verdade, ela foi minha mãe que me criou desde pequeno. Meu pai saía para trabalhar e eu ficava muito só com minha vó em casa. Ela, idosa, não tinha noção do que era organizada e o que tinha no mundo. E também onde eu nasci, na favela, na Vila Peri, era um lugar perigoso de Fortaleza. Na verdade, eu morava mesmo no Parque São José, onde me criei e chamamos favela vertical. Lá é onde me criei mesmo. Na Vila Peri era onde tinha a organizada.
Nessa fase da sua vida, você chegou a se envolver com drogas?
Sim. Me envolvi com o crime até meus 16 anos. Não cheguei a assaltar, meu negócio era só traficar mesmo.
E chegou a usar alguma droga?
Já usei. Só a maconha. Pó, crack, essas coisas, não. Na verdade, nunca fui a favor. Sempre fui um cara de cabeça mais formada. Os caras com quem eu convivi, que a gente fala que são os bandidos grandes, de verdade, eram bandidos mesmo, mas passavam o certo para nós moleques, que queríamos ser como eles. Eles eram nosso espelho, mas, se for ver, hoje estão todos mortos.
Você perdeu muitos amigos?
A maioria. Muitos amigos meus morreram. Nós tínhamos um grupo de amigos de uns 12, 15 e hoje só tem eu e mais dois, o Jamerson e o Vitinho. Há cinco anos, eu tive uma perda muito grande quando mataram meu melhor amigo, o Renê. Chamava ele de Pingo, ele era jogador também. A minha primeira viagem para jogar fora (de Fortaleza) foi com ele. Fomos para Natal, para um time chamado CDF, do Rio grande do Norte. Éramos da base ainda, tínhamos 15 anos e éramos muito chegados. Mataram ele. Até hoje não sabemos o real motivo, só sabemos quem foi e o assassino dele também já está morto. Hoje eu tenho uma tatuagem em homenagem ao meu filho, que tem o nome dele (Renê). Quando ele morreu, no caixão dele eu falei que, quando meu filho nascesse, daria o nome dele. Ano passado meu filho nasceu e fiz a homenagem.
Podemos dizer que você está vivo graças ao futebol?
Com certeza. O futebol foi que abriu meus olhos. E tem um cara em Fortaleza, o Bira, que é um treinador que me ajudou bastante. Ele sempre vinha abrindo meus olhos e sempre me dava oportunidade de viajar porque via que, quando eu ia para Fortaleza, eu me perdia, me envolvia com meus amigos, usava drogas, estava no meio da torcida... Então, ele sempre procurou time para mim fora de Fortaleza para eu viajar e ficar longe.
Em 2014, inclusive, você esteve no Fortaleza já como atleta profissional e não chegou a jogar. O que houve?
Não sei. Creio que, às vezes, não estava em um momento bom da minha vida, tinha acabado de me separar também. Cheguei em Fortaleza e era um sonho para mim jogar no time que eu defendia, que torcia e meio que subiu para a minha cabeça. Acho que não dei meu máximo. Creio também que não tive oportunidade, já que não cheguei a jogar nenhum jogo com o Marcelo Chamusca (técnico). Ele não me deu oportunidade. Treino é treino e jogo é jogo. Ele não me deu uma oportunidade clara. Não estou culpando ele, acho que a maior parte da culpa é minha, eu meio que saía muito. Por eu ser da cidade, fiquei bastante conhecido por ser da torcida (organizada) e ainda jogar no time depois. Isso meio que subiu na minha cabeça, eu saía muito, ia muito para festas, mulher choveu bastante, até que me separei da minha mulher depois.
Recentemente e coincidentemente, a torcida organizada do Náutico invadiu o CT do clube para cobrar vocês após a derrota para o CRB, na 11ª rodada da Série B. Como você reagiu à situação?
Antes de eu falar, só gostaria de esclarecer: não houve agressão física. Só cobrança verbal. Sai muita coisa por aí… Tiveram empurrões, que é normal, os caras estavam exaltados depois de uma derrota, assim como a gente também estava triste. Mas não teve nada de agressão física, só empurrão para conversar. É complicado… Na verdade, assim que os caras vieram para cima da gente, eles já vieram falando para mim: “você honrou a camisa, você foi o único que correu”. Já me senti mais aliviado, porque vieram mais de 20 e a gente não tava com o grupo todo, não tinha nem como se defender caso houvesse agressão. Estávamos do profissional, eu, Vinícius, Gilmar e o Léo Carioca, além do David, que subiu, que era o alvo dos caras. Quem segurou os caras fomos nós quatro, se não tivéssemos, poderia até ter acontecido uma besteira. Foi ainda na própria noite do jogo, logo após a derrota. Foi uma cobrança, vamos dizer assim... Não tranquila porque no começo eles estavam um pouco exaltados, mas conseguimos conversar.
O fato de você ter sido de organizada ajudou no diálogo?
Eles sabem que sou de organizada, pode até ter ajudado, mas não sei. Eles sabem que sei o sentimento deles. Eu já fiz isso também. Já invadi o Pici lá com meus amigos da TUF e sei da cobrança que é. Mas, tipo assim, não vou mentir, eu fiquei meio… não vou dizer com medo, mas um pouco nervoso porque não sabia como os caras tavam, ou como iriam agir.
Eles estavam armados?
Não estavam armados, tava todo mundo na mão mesmo. Foi só cobrança verbal mesmo. Conversamos e acabou que terminou tudo na paz. Todo mundo apertou as mãos e os caras foram embora e combinamos de ter reunião com grupo inteiro no outro dia. No outro dia, os caras tavam aqui, vieram e aí foi uma conversa amigável e até que deu certo. Ganhamos, né? Não vou dizer que foi por eles, ou por causa dessa pressão, mas eles tiveram uma parcela de ajuda também. No outro dia, não vieram aqui para dizer que ia bater ou criticar, vieram para dar apoio a nós mesmos e isso a gente precisava: confiança. Porque nosso time estava um pouco sem confiança e depois da vitória já ficou uma confiança maior.
Você ainda pensa ou tem o sonho de voltar a jogar pelo Fortaleza?
Não vou dizer que tenho sonho pela minha passagem lá... Fiquei bastante chateado por não ter jogado e diminuiu aquele meu lado muito torcedor. Ficou mais o lado profissional, mas não vou mentir que torço muito para o Fortaleza, mano. Que ele saia da Série C, que chegue na Série B, que vá para a Série A, porque, pela estrutura que tem, pela torcida que o time tem, não merece estar nessa situação. Mas se um dia tiver oportunidade de voltar para lá, vai ser muito feliz para mim. Em casa, defendendo o time que já defendia fora brigando, agora poder defender em campo. Seria uma boa. Não digo um sonho, meu sonho mesmo é tirar o Náutico dessa situação. Esse é o sonho que boto na minha cabeça, que boto no travesseiro todo dia antes de dormir e penso. E depois é partir para coisas melhores. Quero chegar à elite do futebol, se Deus quiser.
Você jogaria no Ceará?
Não, no Ceará não. Nada contra o clube, mas creio, assim… Pela história que tive brigando com a torcida do Ceará, se eu chegar lá como vão me apoiar? Torço muito pelos dois clubes da capital subirem porque é bom para nossa cidade, para os moleques que estão saindo da base. Mas não jogaria no Ceará, não.
Você recentemente retrucou comentários de jornalistas que afirmaram que o Náutico iria cair para a Série C. Por que isso?
É complicado. Eu estava nervoso depois do jogo (contra o ABC). Na verdade, não era nem para eu ser entrevistado, as câmeras estavam desligadas e peguei e falei meio ignorante com o repórter. Falei: 'Vamos ligar a câmera que eu quero falar'. O cara ficou meio com medo e eu disse: 'Bora, liga a câmera que eu quero falar'. Ele ligou e perguntou do jogo e fui logo desabafando. Depois que vimos certos comentários de gente de fora que não está no dia a dia e não sabe que a gente trabalha, treina duro para chegar no jogo e conquistar o objetivo que é a vitória... Falam o que querem e se acham donos da verdade. Ninguém merece cair. Aqui tem pai de família.
O grupo do Náutico está fechado?
O grupo está fechado demais. Se tiver algum cara 'laranja podre' a gente bota para fora, aqui não tem trairagem. Depois da lesão, o pior momento de um jogador é um rebaixamento. Não pode falar que se merece cair, não aceito nunca. Se tiver mal, pode falar, aceito, mas falar que vai cair, que é merecido… Isso ninguém merece.
Para finalizar, Breno. Você se arrepende de alguma coisa que fez na organizada? Você saía para a briga, sabia que arriscava a vida e colocava a vida de outras pessoas em jogo: há algum arrependimento?
Não me arrependo de nada, não. Posso dizer que foi uma das melhores épocas da minha vida, a gente nessa época não ligava muito para a vida. A gente defendia o nome da torcida de qualquer jeito até a morte. Não me arrependo, mas não aconselho ninguém a entrar em violência. Aconselho a torcida a gritar, apoiar e fazer festa na arquibancada. Mas nunca mais volto para torcida organizada. Agora, ficam só as lembranças.